Eu leio os livros do homem como se fossem joias perdidas.
Mas tenho que ler escondido. Escondo a caixa onde os livros chegam. O da vez é o de capa roxa. Não posso mostrar pra ninguém. Abro só no fim da noite quando todos já estão dormindo. Sento lá fora e começo a ler linha a linha com uma avidez que poucos livros conseguem provocar. São palavras que se juntam como trechos de vento formam um vendaval.
Eu sei que é um livro perigoso. Todos os do homem são. Especialmente os de capa roxa como aquele. Eu nunca pensei que livros podiam ser perigosos. Coisa da Idade Média, Egito Antigo, Antiga Polinésia. Nunca achei que pudesse ser real. Na verdade, não é que o livro seja perigoso porque o livro é um livro em si: um amontoado de palavras seguindo determinada ordem e forradas lindamente numa capa bem feita. Não é o livro. São as ideias. Ideias podem ser perigosas especialmente quando encontram alguém preparado para recebê-las ou, pior, quando justamente cruzam com quem não está preparado.
A primeira vez em que eu li um livro do homem, eu mergulhei na leitura de tal sorte que entrei em uma caverna labiríntica, úmida, sem guia e sem luz. Me perdi na primeira esquina e quase, quase fiquei por lá para sempre preso em um lado tão encantador quanto perigoso da minha própria psique, do meu próprio eu. Foram momentos de busca seguidos por horas de pavor. De repente eu me dei conta de que não sabia onde estava. E não tinha a menor ideia de qual era o caminho de volta.
Na hora mais escura, fui salvo pela luz da mulher que me espreitava a certa distância sem que eu a visse. Ela me buscou com a luminária do fogo mais potente e me disse:
– Você precisa ter cuidado. A caverna esconde tesouros imagináveis, mas também está cheia de perigos.
Então ela me levou de volta para a entrada e eu respirei aliviado quando senti a rajada de ar frio invadir meus pulmões como no dia em que eu me encontrei sozinho no meio do gelo. O inverno da alma também é o momento de encontro com os próprios demons.
Algum tempo depois, voltei a passar por ali, pela frente da caverna, admirando sua arquitetura natural, viajando pela estrutura circular da entrada e pelos destinos misteriosos daqueles caminhos curvos tão fáceis de se perder. E a cada vez que eu olhava a caverna, eu sentia duas forças em conflito: a projeção do medo contra a intenção da glória.
Tive que esconder o livro de capa roxa num lugar onde eu não pudesse ter mais livre acesso. Melhor assim. Ao menos por enquanto.
Um dia, quando ninguém estiver mais olhando, talvez eu pegue o livro do homem outra vez. E renovado pelas forças das ideias perigosas e poderosas dele, quem sabe eu me aventure de novo pelo limiar da caverna ancestral. Só preciso lembrar de não descer lá sem a guia. Ou de esperar ao menos até que eu consiga fazer o meu próprio fogo. Porque a escuridão ali tem o poder de apagar tudo o que toca. Uma ideia que, como a caverna e os livros do homem, fascina e assusta ao mesmo tempo.