Disputa literária

Três amigos – um rapaz e duas meninas – sentados no lado de fora do boteco. O cara, um rapaz estilo nerd, cabelos lisos nos ombros e óculos grandes, tocava um instrumento arredondado de 2 ou 3 cordas. Digo “tocava” por conveniência, porque tudo o que ele fazia era prender e soltar o dedo displicentemente pelas cordas, provocando um som animado que ecoava pelos ares.

Enquanto isso, duas meninas, uma loira de cabelos longos, outra morena de cabelo curto, eram cigarro atrás de cigarro enquanto realizavam uma disputa, por assim dizer, literária.

A loira, um tanto alterada pela cerveja, lia uma parte de um livro de Cortázar. Era um trecho metalinguístico, sobre o processo de escrever um conto. Ela o fazia com típica empolgação universitária como que degustando lentamente a leitura, uma espécie de prazer ébrio em permitir que as palavras do mestre passassem, um tantinho que fosse, por seus próprios lábios – o que lhe dava uma ilusão também ébria de que tais palavras poderiam ser um pouco dela.

Ao lado, a morena descansa o cigarro para tirar da bolsa um livro azul-piscina sem capa. Limpando a garganta, ela cita Borges. Em seguida, abaixa o livro e continua recitando o trecho que já sabe de cor. Quando termina, diz que não gosta de textos que exigem que o leitor se desdobre muito para conseguir entender.

Agora juntas, a loira lê mais um pouco de Cortazar e a morena continua com Borges. Os trechos literários se intercalam, se sobressaem, ficam justapostos em uma profusão de palavras doces citadas por um mesmo sotaque gaúcho que se prolonga no ambiente.

A disputa dá espaço à conexão. O texto vira um só. À essa altura, o rapaz que continua a tocar o estranho instrumento não percebe algo que está ali, bem na sua frente e justamente por isso, invisível: as duas meninas estão prestes a se apaixonar.

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