Passei as vistas depressa ao redor do parque quando levei um susto. A senhora estava ali, parada como uma estátua assustadora bem perto de mim. Era uma viúva feia, coberta com véu opaco e rosto sombrio. Meu primeiro instinto foi mirar nos olhos dela, mas era impossível de focalizá-los porque as sombras não deixavam. Ou vai ver, ela nem olhos tinha.
Não esperava por uma visão dessas nem em meu pior pesadelo. Olhei de novo para ter certeza de que não era minha imaginação pregando peças. Antes fosse um alumbramento da mente. Mas não. Era real.
– Você veio pra mim? – me limitei a perguntar.
A Morte balançou a cabeça dizendo que sim.
– Mas já?
Em vez de responder, ela chegou mais perto ainda. Minha nuca se arrepiou com a súbita corrente de ar frio, uma sensação gélida que acompanha a viúva por onde quer que ela vá. É a Morte, sempre fria, convicta e irremediável.
A poucos centímetros da minha orelha esquerda, ela balbuciou em uma voz aguda que não era coisa desse mundo.
– Você ainda tem algum tempo.
Então, desatei a chorar.
– E a Anália? E minhas crianças? Como eles vão ficar? O Pedrinho acabou de fazer sete. Mês que vem é Dia dos Pais. Não pode ser, meu Deus. Não pode ser.
Ato idiota e inútil, porque a desgraçada não moveu um fio de cabelo. Devia estar acostumada. Claro. Desde quando a morte se compadece de filho pequeno, aniversário, Dia dos Pais? A tal viúva, que não tem olhos, também não tem coração.
Olhei pro escuro do rosto dela, e a voz voltou a falar:
– Eu vim seis meses atrás quando você estava na cama. Você não me viu, mas eu coloquei um tumor que cresceu sem parar até hoje.
– Um tumor? E não tem jeito de tirar?
– Vai ser de noite, na hora em que a lua abaixa. Aproveita que não é qualquer um que tem esse tempo todo antes do fim.
O que eu podia fazer com aquela informação? Quando olhei de novo ela já tinha ido embora. Me deixou com uma granada acesa. Tumor? Crescendo dentro de mim há seis meses?
Cheguei aos 50 sem problemas de saúde. Sinceramente achava que, com o avanço da ciência, eu facilmente passaria dos 80 anos. 88 era meu palpite. Conheci um homem que chegou aos 88 lúcido como um poeta. Achei que comigo seria igual.
Trinta e oito anos a menos do que o esperado. E o que eu podia fazer? Contar pra família? Viver pesando cada minuto antes da despedida ou comemorar feito um louco o fim da festa? Eu disse comemorar? Tsc… Com que alegria?
Cheguei em casa como quem chega no próprio velório. A Anália percebeu, é claro. Vieram as crianças. Abracei como nunca o Pedrinho e a Rafaela. Acho que acabei apertando eles demais durante o abraço. Dei um beijo longo na Anália antes de anunciar:
– Gente, eu vou ser promovido no trabalho.
Eles estranharam a cara de poucos amigos, mas tentei despistar com a velha desculpa do cansaço e do estresse no escritório.
Tentei ser o mais alegre possível.
– Vamos fazer uma festa aqui em casa. Pode chamar o Betão, o Raimundo, a Mari e até a família do Sebastião! – eu disse já pegando os copos – Vou ligar pro Fabrício pra ele trazer o barril de chopp. Refrigerante, salgadinho e bolo. Bolo de damasco com fubá. É hoje, minha gente. É hoje!
Os convidados chegaram bem quando a lua começou a dar as caras. Todo mundo estranhou o convite de última hora, menos o Sebastião que era mesmo um arroz de festa, ainda mais com tudo pago.
Durante toda a confraternização, não saí do lado da Anália e das crianças nem por um momento. A cada olhar para a lua, me dava uma angústia destruidora.
Então eu disse pra Anália que eu tinha que ir ao banheiro. Pedi pra ela me acompanhar. Fechei a porta e a beijei com paixão adolescente. Ela viu o brilho nos meus olhos e eu vi o brilho nos dela. Como era antigamente.
– Eu te amo!
– O que é que tá acontecendo hoje, hein? Você tá diferente. Chega triste da rua, diz que foi promovido e faz uma festa de última hora… Logo você que nem de festa é fã.
– É que esse é meu último dia, Anália. Eu tenho que ir embora de madrugada.
– Que história é essa? O que você está falando?
– Eu preciso que você seja forte. O negócio é que eu vou morrer hoje. Essa é minha despedida.
Ela desconfiou, mas viu que eu não estava brincando – e nem estava tão bêbado assim. Quando se deu conta da seriedade do assunto, os olhos de Anália marejaram.
– É preciso ser forte. Eu vivi muito. Essa é minha hora. Todo mundo tem a sua. A gente não escolhe. Infelizmente. A minha é hoje. Mas olha, não fica triste, por favor. Eu tô feliz. Eu fui feliz. Muito feliz do seu lado, do lados das crianças. Tive uma vida incrível e quero te agradecer por tudo…
Mas aí, ela desandou a chorar. E eu também.
No resto da festa, fiz questão de limpar toda a louça. Tive tempo de brincar com meus filhos, abracei meus amigos, e na hora do bolo, comi cinco pedaços, porque afinal eu nunca mais precisaria me preocupar com o excesso de açúcar no sangue.
A festa acabou. Eu disse tchau pro amigos, que desejaram boa sorte na nova caminhada.
A lua ainda ia alta. Então tive tempo de colocar as crianças pra dormir e fiquei abraçado com Anália na grama do quintal.
– Quando passar a dor, promete que vai fazer de tudo pra ser feliz?
Ela balançou a cabeça e perguntou:
– É verdade? Tudo isso que você tá falando é sério?
Não precisei responder. Ela me abraçou forte e disse que me amava muito. Eu a abracei ainda mais forte.
– Você é a mulher da minha vida.
Ficamos assim por um tempão.
Os segundos seguintes foram os mais difíceis. É que no final da caminhada, o peso fica quase impossível de carregar.
Deitada na grama, Anália adormeceu. Fiquei feliz porque assim a despedida ficaria um pouco menos tensa.
Então, a lua abaixou. Como prometido, a viúva apareceu na hora marcada, nem um segundo a mais.
– É hora – ela falou.
Por um instante, acreditei ter visto um sorriso de deboche no rosto da morte. Mas, como não dava para visualizar rosto nenhum na viúva cheia de sombras, talvez o deboche tenha vindo de mim mesmo.
Me levantei com cuidado para não despertar Anália. Me aproximei da Morte, que pegou duas amarras para colocar em meus pés e nas minhas mãos. A regra era que eu saísse da vida como prisioneiro da morte. Me recusei. Foi andando na frente da viúva que, por fim, guardou as amarras. Se tenho que sair da vida, que seja como entrei: livre e de cabeça erguida.
Dei uma última olhada para Anália e meu eu já inerte ao lado dela na grama do quintal. Me cortou o coração. Mas a Morte, essa não deu nenhum suspiro. Continuou a caminhar atrás de mim. Só que dessa vez eu já não tinha medo. E a tristeza foi dando lugar à certeza de que, no fim de tudo, eu vivi como tinha que viver. E nada, nem minha própria morte, era capaz de me fazer mudar de ideia.
8 de outubro de 2014