Ela não foi a primeira mulher a dizer que eu era um cara misterioso. Eu já tinha ouvido isso antes. E não poucas vezes. Mas com ela foi diferente. Ela não disse como quem julga, nem como quem lamenta. Ela disse como quem diz e nada mais. Tipo qualquer outra observação sobre qualquer outra característica física ou psicológica. Algo como “você tem cabelo preto”. Foi essa leveza dela que me desarmou. Eu fiquei sem saber mais o que dizer e por isso não disse nada. E ficamos um tempão só olhando um pro outro enquanto o mundo ao redor enrouquecia.

No dia antes de ela ir embora, ela me trouxe um presente. E me desarmou mais uma vez. Eu não tinha comprado nada em troca e fiquei totalmente sem jeito. Ela percebeu, tentou aliviar a tensão. Nisso eu fui tratando de disfarçar abrindo logo o embrulho. Era retangular, leve e pequeno. Quando finalmente vi o que era, meu peito se encheu. Não pelo objeto em si, mas pela lembrança.

É que há muito tempo, numa dessas conversas cheias de álcool que a gente compartilhava pelas madrugadas, eu falei de escritores e de escrituras. Falei do Hemingway e de como o jeito de viver de uma pessoa pode refletir em tudo aquilo o que ela acaba fazendo. Ela não conhecia Hemingway, mas me olhava com toda a atenção do mundo.

A conversa não foi muito adiante. Logo surgiu outro assunto e eu tinha esquecido tudo aquilo. Até abrir o presente. Era um caderno de folhas sem pauta com a assinatura do Hemingway encravada na capa.

Agradeci do meu jeito estranho e sem graça. E prometi que só escreveria coisas bonitas naquele caderno, coisas que pudessem ser de alguma forma inspiradoras como aquele momento do presente.

E daí eu disse que ela também era misteriosa. Falei como quem fala, não como quem julga, nem como quem lamenta. Ela me sorriu aquele sorriso leve e cheio de significado. O mesmo sorriso que eu vejo naqueles dias quando sonhos bons vêm me visitar.