Ela me abraça enquanto me conta um bocadinho da própria vida. A vida dela era viajar. Viajava todos os dias, sete dias por semana, cada dia numa cidade, cada noite numa estrela.
Viajava, trabalhava, trabalhava e voltava a viajar. Tudo era movimento porque ela era assim. Não tinha um lugar só, tinha lugares, ela. E raramente voltava pra primeira casa porque o lugar dela era onde ela mais passava os dias e as noites. A estrada, o vento, a liberdade dos que não têm um dia sequer, nenhunzinho, de rotina ou de saber o que exatamente se é pra fazer.
O problema é que o trabalho nesses lugares era bem rápido. Ela nunca ficava, estava sempre tendo que ir embora. Chegando e indo embora. Nunca dava “oi” sem “tchau”. Vivia sempre na batida rápida dos que pisam com um pé e se vão no outro.
“Então”, ela me disse, “foi assim nesse trabalho que eu conheci todo o Brasil”. O Brasil todinho, de canto a canto, as principais cidades e as nem tão principais assim. Dormiu em camas variadas, com gente variada, ouvindo sotaques diferentes e palavras fora do comum. Teve dor nas costas de tanto dirigir, dor nas pernas de tanto andar, dor no coração de tanto partir.
E agora ela está assim, aqui, bem na minha frente, por mais uma noite, pela última noite antes da próxima viagem. Porque é, ela tem que viajar. De novo e de novo. E quando você gosta de quem viaja, você não pode deixar nunca brotar a esperança do ficar, nem a do pertencer, nem a do ter, porque quem viaja não pertence a ninguém, não fica em lugar nenhum e nem é de ninguém como talvez ninguém seja de ninguém. O fato é que quem viaja é menos ainda de alguém do que quem nunca abriu a porta de casa e pôs os pés pra fora.
E então uma hora, tarde da noite-quase-manhã, eu ouso perguntar, não porque queria causar problemas, mas por ser motivo de dúvida genuína.
– Até que ponto você conhece os lugares onde vai?
E depois de um segundinho com a pergunta assim suspensa, ela me diz que:
– Não. Eu não conheço nada. Eu passo. É isso o que eu faço. Às vezes dá tempo de conhecer a praça central, às vezes não. Às vezes eu vou prum bar e tomo uma bebida local, converso com alguém da cidade, durmo por ali. Outras vezes, eu estou tão apressada tendo que chegar em outro lugar que nem isso dá pra fazer. Eu sou sempre assim. Estou sempre tendo que sair e que chegar. E assim, eu viajo por paisagens, não por lugares. O que, se você me perguntar, é uma forma de viajar, mas não a única, talvez não a mais interessante, mas é a minha. É assim que eu viajo. E é assim que a viagem viaja em mim.
Ela era uma conhecedora de paisagens com a memória tão boa que, mesmo na correria dos que voam de lugar a lugar, ela sabia exatamente descrever os cheiros das cidades, a atmosfera do ar, o humor dos ventos e o efeito que tudo aquilo provocava no coração dela. Porque, ela me disse, ir pra qualquer lugar novo é se conhecer também. Você vai enquanto vem. Um lugar fica marcado pra você quando você sente alguma coisa de verdade sobre si mesmo e, assim, fica um pouquinho mais perto de responder à pergunta que não tem resposta.
Então, depois que o silêncio calmo voa no ar, ela se vira, coloca meu braço com carinho em torno do corpo dela e me diz fechando os olhos:
– É tão bom se sentir cuidada, sabia? Essa cidade tem a lembrança de você.
E dorme o sono dos que viajam.