Passeei pelas fotos roubadas. Não era pra eu ver. Eu nem convidado era naquele álbum de fotos ao mesmo tempo tão público e tão privado.
Mas movido por um impulso não-sei-do-que, invadi mesmo assim e devassei as fotos, semana por semana, com a curiosidade obscena de um homem rejeitado.
E vi os momentos tão só dela e tão marcantes. Começa com o abraço besta num sofá estranho em um cara barbado qualquer. Barba castanha espanada, ele meio gordinho. Onde estava a mulher que havia me trocado pelo bombado surfista? Escolheu um cara tão meio assim, baixo nível longe de mim e também do surfista. Preconceito. Talvez ele não seja fotogênico. Só isso. Tem gente que é incrível na vida real, mas que sai meio besta nas fotos. Conhecendo ela, tenho certeza de que o cara é um cara legal.
E depois dessa vem uma casual dela vestida de hippie numa festa à fantasia. Escreveu “oi, bicho” de um jeito que eu nunca a ouvi falar. Deve ser eu o problema, é claro. Porque eu não a conheci assim, tantos anos depois. Então como poderia saber como ela costumava falar?
Depois, vem uma dela abraçada com as amigas, as “minhas lôras”, e outra de uma bacia de blueberry, outra da irmã tomando café em preto e branco… Como engordou a irmã!
E então uma da barriga. Ela com o cara besta e uma barriga consideravelmente maior. Ela com uma mulher mais velha tocando na barriga. E ela com uma barriga saliente tomando água de coco na Riviera. Um frame de um filme cult, mas batido. O que teria acontecido com o gosto cinematográfico dela, sempre tão distinto? Parou no tempo ou o filme batido com citação em Comic Sants veio dos melodramas do dia a dia?
E momentos, momentos, momentos. Ela com a filinha recém nascida. Como envelheceu da barriga #1 até a barriga final! E como a barba do carinha cresceu. E como ficaram com cara de loucos. E depois voltaram com a cara ao normal.
E felizes. E momentos do dia a dia com a filinha, que agora é o centro de todas as fotos. E eu – insensível? – me pego pensando como há um quê besta na humanidade, nessa coisa de ter que se juntar, casar, reproduzir e achar o sentido da vida na prole. Como se fôssemos programados para só fazer isso. E não somos?
E aí os momentos roubados nas fotos dela me levam subitamente para o instante lá longe, quando eu a conheci, ainda praticamente duas crianças. E da conexão imediata como eu nunca havia experimentado, uma identificação de encontrar uma cinéfila num meio onde eu não tinha nem um amigo nem uma amiga com quem pudesse conversar sobre cinema de verdade. E da nossa atração pela Bruxa de Blair. E do meu espanto naquela noite quando eu constatei como ela era culta e quantos filmes ela tinha visto. Foi atração à primeira vista. Saí de lá apaixonado.
E depois, quando eu fui na casa dela, e vimos filmes juntos, e eu deitei na cama dela, e vimos mais filmes. E de repente a projeção VHS deixou de me interessar porque a batida do coração já estava mais alta do que os gritos da Carrie, a Estranha, que passavam na TV dela, no quarto dela.
E em algum momento, antes ou depois, sei lá, ela perguntou: “Você gosta de filmes velhos?” E eu demorei pra responder porque estava preso olhando a boca dela articular a mensagem de forma tão atraente, tão sedutora. E eu estava tão apaixonado que acho que ela percebeu. As mulheres que eu conheci sempre percebiam as coisas que eu tentava esconder.
E eu parei de dormir. E passei as tardes nas fileiras da locadora procurando filmes que ela talvez nunca tivesse assistido, me educando sobre os gêneros cinematográficos, as sinopses, alugando 3, 4, 6 filmes por semana para conseguir conversar com ela de igual para igual, citar diálogos, reproduzir o olhar dos atores apaixonados e reencenar cenas marcantes como se fossem momentos da vida presente. Era meu plano para conquistar a moça. E agora eu já não era mais criança. Porque tinha encontrado alguém. Só faltava me declarar, pular o grande muro alto do caminho sem volta, o medo do tudo a perder, o frio na barriga da rejeição provável. E era hora de falar com a boca o que meus olhos berravam, o que ela provavelmente já sabia, se não pelo coração acelerado, talvez pelo atrapalhamento repentino que me dava quando ela me perguntava alguma coisa e eu demorava pra achar uma resposta que não fosse “Eu quero ficar com você” ou “You had me at Hello”.
Só que eu não consegui ser o apostador que eu devia ter sido. E o outro cara deu um all-in. Um surfista que não pensava muito, não sabia de Cinema e que a tratou bem mal depois de sair com ela um par de vezes. O cara era um escroto e assim, sem mais nem menos, roubou ela do nosso círculo de amigos e a transformou para sempre. O primeiro abandono a gente nunca esquece.
Continuei com os filmes e demorei um tempo até voltar a acertar a batida do coração.
E deixei a projeção seguir, porque é isso que ela faz. Ela segue. Eu nunca voltaria a essas cenas fortuitas, quase esquecidas, não fosse essa roubada que eu dei nas fotos dela muitos anos depois. A vida é um movimento intermitente cheia de instantes que nascem, crescem e um dia têm que morrer. Vendo os momentos dela, me deu uma saudade dos momentos que não aconteceram. As fotos do Instagram excluem o feio, as brigas e a dor. Mas nas entrelinhas, elas gritam o mundo que não faz falta registrar.
Me embaralho e não consigo parar de pensar que essa talvez seja justamente a maldição do sonhador. O mundo mais perfeito, é aquele que nunca existiu.