Em uma guerra, existem lados. Essa é mais uma mentira que eles querem fazer você acreditar. Na verdade, não há lados. O que existe são seres humanos. Não importa de que lado caiam, as armas que carreguem e nem por quais forças acreditem estar lutando. São apenas humanos.
Eu sei disso porque já vi muita gente morta. É parte do meu ofício. O sangue quente seca no chão, as explosões ecoam no horizonte e meu trabalho é tentar retirar com vida o maior número de pessoas do campo de batalha. Uma hora você se acostuma. Não com a barbárie, não com a morte sem sentido, nem com a dor no rosto alheio. Você se acostuma é com o ambiente da guerra. As pupilas aprendem a funcionar com a luz das explosões, o ouvido interpreta o som dos tiros como qualquer outro barulho e os olhos… Eles se habituam a ver a perda de brilho nas vistas dos feridos. Depois de tantas tragédias, é possível dizer exatamente a hora em que a alma de alguém se vai para sempre.
Quem me ensinou a ver a viagem da alma foi meu parceiro John Mils, um inglês que abandonou a vida ganha da classe alta britânica para ajudar os feridos de guerra pelo mundo.
Como dupla, nós tínhamos uma maneira eficiente de trabalhar. Ele era médico formado; eu não. Então eu preferia carregar os materiais enquanto John era responsável pelos primeiros socorros. Mas como geralmente o estado dos feridos era grave, nós dois tínhamos que tratar dos homens caídos. Nós dois em um campo de milhares.
Depois do choque dos primeiros anos de treinamento na Cruz Vermelha, algo em John mudou para sempre. A guerra transformou o rapaz bem nutrido com sede de mudança social. Ele já não falava muito. Limitava-se a fazer o trabalho com uma raiva inconsolável daqueles que criavam os conflitos no mundo. Os políticos de gabinete é que deviam descer ao campo de batalha, John dizia.
Mesmo maldizendo as guerras, todas elas, John gostava da adrenalina. Quando ele foi baleado, no meio de uma retirada, eu pensei que seria a hora de ver a alma de John ir embora.
Mas quando o coloquei no carro, cheio de sangue espalhado pelo corpo, John começou a rir de uma forma demoníaca. Pensando agora parece estranho. Era como se ele estivesse se divertindo com a própria dor.
Antes de chegar ao hospital, ele agarrou minha jaqueta. Descontrolado, John dizia aos risos:
– Agora eu sei! Eu sei como é levar um tiro. Eu entendo agora.
Quando ele se recuperou dias depois, fomos conversar sobre o acontecido. Com uma clareza de pensamento incrível, ele me disse que ter levado um tiro era quase uma benção para a profissão. O John era louco. Mas era um louco que fazia bem.
Logo fomos chamados de novo para mais uma aventura. De novo no Oriente Médio, onde as guerras não acabam nunca. E enquanto os donos do mundo conversam regados à uísque on the rocks, a gente trabalha com os retalhos de gente que os engravatados despacham para a batalha.
Verdade seja dita: naquela tarde do 16 de outubro, tudo o que eu precisava era de um uísque on the rocks.
Estávamos há quinze horas dentro da cidade em bombardeio. Mulheres e crianças se acumulavam entre os mortos. Era impossível salvar todos os feridos. Nossos descolamentos eram grandes demais e no jipe só cabiam duas pessoas deitadas.
O John apontou pro alto da colina e eu vi um soldado correndo como louco atirando com a metralhadora. Olhei nos olhos do sujeito e percebi que não passava de um menino com uma faixa na cabeça indicando um símbolo religioso.
No outro extremo, um garoto da mesma idade sacou o revólver e atirou contra o menino da metralhadora, que mesmo ferido caiu atirando.
A metralhadora virou em nossa direção. Eram rajadas pra todo o lado. Um tiro só não atingiu em cheio minha cabeça porque o John me puxou pra baixo bem na hora.
Nosso carro ficou crivado de balas e eu senti um frio na barriga atrasado pelo que poderia ter acontecido.
Os dois meninos-soldados caíram lado a lado. Eles gemiam enquanto o resto de vida se esvaía pela terra cinza.
– Rápido, traz o carro aqui – John ordenou.
Cheguei com o carro e as macas. Colocamos os meninos no jipe um ao lado do outro. Um deles balbuciava a mesma palavra muitas e muitas vezes. Mas eu nunca consegui identificar o que ele dizia.
John ficou na parte de trás do jipe estancando a hemorragia dos feridos, enquanto eu cruzava a cidade pisando forte no acelerador. Nessas condições, cada segundo ganho é uma possibilidade de vida.
Eu já conseguia ver a torre do hospital quando um soldado em terra me mandou parar na barricada.
Como não tínhamos tempo para aquilo, apertei a buzina várias vezes, indicando o símbolo humanitário no carro. Era um checkpoint do Exército, parada obrigatória para todos, com exceção da Cruz Vermelha.
Foi então que um dos soldados apontou o rifle bem no meio dos meus olhos. Em um inglês quase perfeito, ele falou:
– Aqui só passa quem a gente quer que passe.
O sangue subiu e eu gritei:
– Você vai parar um carro da Cruz Vermelha? Tem gente ferida aqui dentro.
Ele abaixou a arma, mas não o tom de voz.
– Quem vocês estão levando?
Abri o toldo de trás do jipe. Alheio ao que estava acontecendo, John tentava estancar a hemorragia dos feridos com gaze. O guarda se aproximou dele com a arma em riste. Mas John ainda levou alguns segundos até fechar a gaze com esparadrapo e finalmente olhar nos olhos do guarda armado.
– Abaixa essa merda que eu não sou soldado – John falou, enfrentando o homem com um olhar firme.
O soldado aproximou o rifle, a raiva estampada em cada músculo da face.
– Se a gente não chega no hospital agora, eles morrem – disse John. – Libera logo, cacete!
Com as mãos empapadas de sangue, John segurou o rifle do homem.
– Eu não tenho medo de você. Se vai atirar atira logo e acaba com essa merda.
O soldado abaixou o rifle e passou os olhos nos dois meninos que agonizavam.
Apontando para aquele que tinha a faixa religiosa na cabeça, o homem falou:
– Pode levar aquele lá. O outro fica. Esse aí não merece viver.
– De jeito nenhum – disse John. – Nós vamos levar os dois pro hospital agora. Os dois.
– Eu não sei de onde você vem, mas aqui é do jeito que eu tô falando – o soldado replicou. – Aquele ali vai, é soldado valente que merece o dom da salvação. Mas esse verme aqui fica.
– E quem você acha que é para escolher quem vive e quem morre?
O guarda se aproximou ainda mais. Do banco da frente, eu conseguia sentir o mau hálito da guerra em sua face mais desumana:
– Eu escolho a vida que vale mais.
O guarda fez um sinal para os capatazes, que foram logo agarrando os pés do menino que agonizava. O objetivo era jogá-lo à terra e fuzilá-lo sem dó. Era assim que a vida se definia naquele lugar que Deus esqueceu.
Só que John foi mais rápido. Pegou o revólver no coldre do outro soldado e apontou para os guardas, preparado para atirar a qualquer momento.
O soldados todos pararam quando John colocou a arma na têmpora do soldado-menino que tinha a faixa na cabeça, o soldado que os guardas queriam salvar.
– Vão os dois ou não vai ninguém.
Eu entrei em choque no banco da frente. A decisão de John ia nos matar em instantes. Todos os soldados engatilharam. De repente tínhamos três rifles apontados para o carro da Cruz Vermelha.
O rosto de John não piscou durante os segundos tensos que se seguiram. O tempo demorou a passar.
Então, ainda de arma em riste, o guarda que estava liderando a barricada mal ordenou para os outros:
– Libera.
A cancela abriu e eu acelerei como nunca. Só então John largou a arma e soltou um resmungo de exaustão.
Chegando no hospital, outros profissionais levaram os meninos para o ambulatório. Foram submetidos à cirurgia um ao lado do outro. Ali, de nada importava os lados que eles defendiam durante o conflito.
No outro dia teve cessar-fogo. Encontrei John parado na porta de entrada do hospital, olhando a paisagem desolada da guerra destruidora. Ofereci meu café pra ele. Ele aceitou.
Depois de lembrar do acontecido, eu tive que perguntar.
– Você ia atirar? Você ia matar o menino se os guardas não tivessem liberado os dois?
John olhou fundo nos meus olhos. Não sei o que aquele olhar queria dizer. Quem sabe a resposta era óbvia, quem sabe nunca deveria ser respondida.
Ele tomou um gole de café e nunca me respondeu.