Boa tarde. Boa tarde.
Em primeiro lugar, eu acho que vocês precisam saber o meu nome. Porque eu não acredito que ninguém consiga conversar com ninguém sem saber quem esse alguém é. Ou como se chamam, ou como lhe chamam.
Não é?
Meu nome é Jean Carlos Flaubert. Eu sou piloto de avião.
Eu sei o que vocês devem estar pensando agora. Piloto de avião? Boing? Gol, Tam, Azul? American Airlines? Roupa azul e branca, quepe respeitável, três estrelas no colarinho, luva branca e a cabeça nas nuvens.
Lamento desapontá-los. Mas eu não sou piloto comercial. E a aviação comercial não é assim como vocês pensam, não. Não tem nada de estrela nem glamour. Tem muito piloto alcoólatra e irresponsável por aí pilotando horas sem dormir só para garantir o salário, que nem é tão bom como as pessoas pensam.
Bom, eu sou alcoólatra, irresponsável e piloto horas e horas sem dormir. Já cheguei a 52 horas de voo quase ininterrupto e quase sem piscar. É. Eu sou tudo isso. Mas não sou piloto comercial. Eu posso.
Piloto um avião de médio porte, o Red-WK35. Red de vermelho. Vemelho porque eu pintei. Eu pintei porque é meu. O avião é meu.
Eu faço entregas. E meu trabalho não é muito diferente do trabalho do caminhoneiro. Com a diferença que eu não tomo rebite. Eu tomo a Sete. A Sete é uma pilulazinha branca que tem o tamanho de um tique taque e apenas duas calorias. É a pílula das nuvens. Com ela, minha cabeça fica bem onde tem que ficar.
E você me culpa? É assim que eu faço meu dinheiro. Muito mais do que os pilotos comerciais. Com um diferencial: eu sou dono de mim. Eu sou a minha TAM, a minha GOL, a minha própria Varig. Tudo isso à bordo do meu Red-WK35.
Ah, vocês deveriam ver. Poderiam até dar uma volta comigo dia desses. Só pra sentir a suavidade das asas do Red. Quando eu entro em uma nuvem eu faço questão de fazer o ritual. Primeiro eu viro a asa esquerda. Depois, devagarinho, sentindo cada vibração do vento, eu viro a esquerda. E aí, quando o bico do avião se alinha no horizonte do sol, eu acelero. Acelero como nunca.
Virado pra cima, eu experimento um arranque direto em direção ao sol. E vou com tudo, como se quisesse sair da órbita da Terra e planar pelos nove planetas. Oito na verdade porque Plutão saiu da lista.
E lá estou eu, acelerando, acelerando, acelerando… Então eu me sinto livre, meu pensamento entra em sintonia com o nada, eu vejo os olhos e largo a mão. É incrível. O avião vai sozinho, como se estivesse treinado. Por um momento, coisa de segundos, não existe lei nenhuma. Nem a lei da gravidade, se você quer saber. O Red fica suspenso e o tempo… O tempo para.
Volta depois, quando as peças não aguentam mais. Aí é hora de descer. Voltar e fazer o trabalho que me mandaram fazer. Depois do ritual, me sinto energizado para fazer qualquer trabalho. Qualquer um.
E eu volto. E faço. E volto. E faço. E transporto mercadorias sem perguntar o que tem dentro das caixas.
Sei que pode parecer estranho, mas é que se eu começo a perguntar ou querer saber, eu acabo não sendo confiável. E deixa eu te dizer que, nesse meio, confiança é tudo.
A maioria é carregamento de drogas mesmo, sabe? Não dá pra ser ingênuo aqui. É pó branco vindo da Colômbia pro Mato Grosso, de Porto Alegre pro Amapá ou mesmo renovação de estoque em Minas Gerais. Maconha, ecstasy, até heroína eu já transportei. Até droga lícita – aquela da depressão – pra vender no mercado negro no Paraguai.
E vi muita coisa boa também. A plantação mais bonita do mundo, por exemplo, fica num povoado perto de Bogotá. Uma mata verde que dá gosto de ver.
Mas falando sério, eu sou um piloto de entregas. Já fiz mais de cento e oitenta e sete mil, quatrocentas e trinta e cinco delas. E sabe quantas vezes eu não entreguei a encomenda? Uma só.
Era um dia comum. Só que aí, a caixa era maior do que o devido. O devido não, o usual. Como sempre, eu não perguntei o que era. Peguei o avião, coloquei combustível, fechei a mercadoria e fui pra pista. Bombordo, estibordo, flaps, tudo certo. Bora voar. Estou no ar, no meio do meu ritual particular, quase tocando o bico do Red no meio do sol, quando a caixa se abre.
Me assustei por alguns segundos e soltei o avião. O Red, que já é treinado e sabe das coisas, desembicou e voltou à posição certa. Olhei de novo. A caixa sacudia que sacudia. Me preocupei. Que porra é essa?
Acionei o piloto automático, o Redinho. Virei e fui até a carga pra ver que diabos tinha nessa caixa. Se você tem uma entrega aí pra eu entregar, pode ficar tranquilo que eu nunca, nunca mesmo, me interesso por saber o que tem no meio da mercadoria. Mas daquela vez eu tive que descobrir. Afinal eu e meu avião podíamos estar em risco. E eu, meu amigo, eu não gosto de correr riscos.
De frente pra caixa, vi que a coisa era mais séria do que parecia. A maldita não parava de se debater. Me benzendo com água benta que eu levo sempre no bolso, abri o caixote. E aí….
(pausa pra tomar um gole).
No começo eu me assustei. Era uma mulher amarrada na tal caixa indo de refém para algum grupo de traficantes ou coisa que o valha. Tirei as amarras, a venda do rosto dela e dei um pouco de água para a coitada. Água benta mesmo que era a única que eu tinha.
Então eu a vi melhor.
Se eu estava esperando encontrar o Capeta, não podia ter surpresa mais agradável. Me encontrei foi com a Deusa.
A Deusa. Tá até hoje comigo. Virou minha mulher, cuidadora do Red- WK35, co-pilota da minha vida e trem de pouso da minha história.
“Dáme otra cerveza, mi amor?” Desculpa aí, é que minha garganta tá seca e ela só fala portunhol.
17 de julho de 2014