Ritual dos papeis rasgados

Todos os dias, ele lia uma página do livro. Frente e verso. Uma apenas, que era para manter a sanidade. Às vezes era difícil ficar em uma só. Mas era preciso. Para contar o tempo.
Aí, tirava um pequeno e desgastado lápis de trás de uma frestinha quebrada da parede. O lápis foi esquecido por um guarda durante uma inspeção surpresa. Era um bom lápis. Mas de tanto que o tempo passou, o grafite ficou todo gasto. Nunca deram por falta do objeto. Era com ele que ele desenhava, com precisão de arquiteto, todo o complexo clandestino onde ele estava preso já havia tanto tempo.
Contava os passos e sempre fazia uma escala aproximada em metros. Era nas abas da folha arrancada do livro que Abelardo desenhava a planta do lugar. É. O nome dele era Abelardo. Mas ali, todo o mundo só o conhecia como Trapa, de Trapaça, porque sabia ganhar no jogo de cartas por métodos que não eram convencionais nem naquele lugar. Por isso fora proibido de jogar para sempre. O novo apelido pegou depois de uma surra.
Algumas vezes, oTrapa passava a noite preparando os detalhes do desenho para memorizar a planta. Ficava por horas repassando o lápis nas linhas e curvas que só existiam no desenho dele. É que na verdade, aquele lugar era feito de retas frias e pouco calculadas.
Como um ritual, um costume, uma rotina, todo dia antes de soar o alarme de despertar, ele se levantava, lançava um último olhar ao desenho da noite anterior e rasgava o papel em pedaços tão minúsculos capazes de se diluírem em duas ou três descargas do vaso.
O ritual dos papeis rasgados acontecia todo dia. E dia era o que ele mais tinha para gastar.

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